quarta-feira, 1 de junho de 2016

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL AMORIS LÆTITIA

EXORTAÇÃO APOSTÓLICA PÓS-SINODAL
AMORIS LÆTITIA
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
AOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
AOS ESPOSOS CRISTÃOS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE O AMOR NA FAMÍLIA
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1. A ALEGRIA DO AMOR que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja. Apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio – como foi observado pelos Padres sinodais – «o desejo de família permanece vivo, especialmente entre os jovens, e isto incentiva a Igreja».[1] Como resposta a este anseio, «o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente uma boa notícia».[2]
2. O caminho sinodal permitiu analisar a situação das famílias no mundo actual, alargar a nossa perspectiva e reavivar a nossa consciência sobre a importância do matrimónio e da família. Ao mesmo tempo, a complexidade dos temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A reflexão dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e criativa, ajudar-nos-á a alcançar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas.
3. Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela. Assim há-de acontecer até que o Espírito nos conduza à verdade completa (cf. Jo 16, 13), isto é, quando nos introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De facto, «as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado».[3]
4. Em todo o caso, devo dizer que o caminho sinodal se revestiu duma grande beleza e proporcionou muita luz. Agradeço tantas contribuições que me ajudaram a considerar, em toda a sua amplitude, os problemas das famílias do mundo inteiro. O conjunto das intervenções dos Padres, que ouvi com atenção constante, pareceu-me um precioso poliedro, formado por muitas preocupações legítimas e questões honestas e sinceras. Por isso, considerei oportuno redigir uma Exortação Apostólica pós-sinodal que recolha contribuições dos dois Sínodos recentes sobre a família, acrescentando outras considerações que possam orientara reflexão, o diálogo ou a práxis pastoral, e simultaneamente ofereçam coragem, estímulo e ajuda às famílias na sua doação e nas suas dificuldades.
5. Esta Exortação adquire um significado especial no contexto deste Ano Jubilar da Misericórdia, em primeiro lugar, porque a vejo como uma proposta para as famílias cristãs, que as estimule a apreciar os dons do matrimónio e da família e a manter um amor forte e cheio de valores como a generosidade, o compromisso, a fidelidade e a paciência; em segundo lugar, porque se propõe encorajar todos a serem sinais de misericórdia e proximidade para a vida familiar, onde esta não se realize perfeitamente ou não se desenrole em paz e alegria.
6. No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na Sagrada Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir disso, considerarei a situação actual das famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família, seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao amor. Em seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à educação dos filhos. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao discernimento pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que o Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade familiar.
7. Devido à riqueza que os dois anos de reflexão do caminho sinodal ofereceram, esta Exortação aborda, com diferentes estilos, muitos e variados temas. Isto explica a sua inevitável extensão. Por isso, não aconselho uma leitura geral apressada. Poderá ser de maior proveito, tanto para as famílias como para os agentes de pastoral familiar, aprofundar pacientemente uma parte de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam em cada circunstância concreta. É provável, por exemplo, que os esposos se identifiquem mais como quarto e quinto capítulo, que os agentes pastorais tenham especial interesse pelo capítulo sexto, e que todos se sintam muito interpelados pelo oitavo. Espero que cada um, através da leitura, se sinta chamado a cuidar com amor da vida das famílias, porque elas «não são um problema, são sobretudo uma oportunidade».[4]
  8. A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a família de Adão e Eva, como seu peso de violência mas também com a força da vida que continua (cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem as núpcias da Esposa e do Cordeiro (cf. Ap21, 2.9).As duas casas de que fala Jesus, construídas ora sobre a rocha ora sobre a areia (cf. Mt 7, 24-27), representam muitas situações familiares, criadas pela liberdade de quantos habitam nelas, porque – como escreve o poeta – «toda a casa é um candelabro».[5]Agora entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista, através dum canto que ainda hoje se proclama nas liturgias nupciais quer judaica quer cristã:
«Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao Senhor.
O Senhor te abençoe do monte Sião!
Possas contemplara prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida,
e chegues a ver os filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!» (Sl 128/127, 1-6).
Tu e a tua esposa
9. Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua família sentada ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher?» (Mt 19, 4). E retoma o mandato do livro do Génesis: «Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24).
10. Aqueles dois primeiros capítulos grandiosos do Génesis oferecem-nos a representação do casal humano na sua realidade fundamental. Naquele trecho inicial da Bíblia, sobressaem algumas afirmações decisivas. A primeira, citada sinteticamente por Jesus, declara: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (1, 27). Surpreendentemente, a «imagem de Deus» tem como paralelo explicativo precisamente o casal «homem e mulher». Quererá isto significar que o próprio Deus é sexuado ou tem a seu lado uma companheira divina, como acreditavam algumas religiões antigas? Não, obviamente! Sabemos com quanta clareza a Bíblia rejeitou como idolátricas tais crenças, generalizadas entre os cananeus da Terra Santa. Preserva-se a transcendência de Deus, mas, uma vez que é ao mesmo tempo o Criador, a fecundidade do casal humano é «imagem» viva e eficaz, sinal visível do acto criador.
11. O casal que ama e gera a vida é a verdadeira «escultura» viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e salvador. Por isso, o amor fecundo chega a ser o símbolo das realidades íntimas de Deus (cf. Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48, 3-4). Devido a isso a narrativa do Génesis, atendo-se à chamada «tradição sacerdotal», aparece permeada por várias sequências genealógicas (cf. Gn 4, 17-22.25-26; 5; 10; 11, 10-32; 25, 1-4.12-17.19-26; 36): de facto, a capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação. Sob esta luz, a relação fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever o mistério de Deus, fundamental na visão cristã da Trindade que, em Deus, contempla o Pai, o Filho e o Espírito de amor. O Deus Trindade é comunhão de amor; e a família, o seu reflexo vivente. A propósito, são elucidativas estas palavras de São João Paulo II: «O nosso Deus, no seu mistério mais íntimo, não é solidão, mas uma família, dado que tem em Si mesmo paternidade, filiação e a essência da família, que é o amor. Este amor, na família divina, é o Espírito Santo».[6] Concluindo, a família não é alheia à própria essência divina.[7] Este aspecto trinitário do casal encontra uma nova representação na teologia paulina, quando o Apóstolo relaciona o casal com o «mistério» da união entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 21-33).
12. Mas Jesus, na sua reflexão sobre o matrimónio, alude a outra página do Génesis – o capítulo 2 – onde aparece um retrato admirável do casal com detalhes elucidativos. Escolhemos apenas dois. O primeiro é a inquietação vivida pelo homem, que busca «uma auxiliar semelhante» (vv. 18.20), capaz de resolver esta solidão que o perturba e que não encontra remédio na proximidade dos animais e da criação inteira. A expressão original hebraica faz-nos pensar numa relação directa, quase «frontal» – olhos nos olhos –, num diálogo também sem palavras, porque, no amor, os silêncios costumam ser mais eloquentes do que as palavras: é o encontro com um rosto, um «tu» que reflecte o amor divino e constitui – como diz um sábio bíblico – «o primeiro dos bens, uma ajuda condizente e uma coluna de apoio» (Sir 36, 24). Ou como exclamará a mulher do Cântico dos Cânticos, numa confissão estupenda de amor e doação na reciprocidade, «o meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim» (2, 16; 6, 3).
13. Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração e a família. Este é um segundo detalhe, que podemos evidenciar: Adão, que é também o homem de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta, juntamente com a sua esposa dá origem a uma nova família, como afirma Jesus citando o Génesis: «Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só» (Mt 19, 5; cf. Gn 2, 24). No original hebraico, o verbo «unir-se» indica uma estreita sintonia, uma adesão física e interior, a ponto de se utilizar para descrever a união com Deus, como canta o orante: «A minha alma está unida a Ti» (Sl 63/62, 9). Deste modo, evoca-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e corpórea, mas também na sua doação voluntária de amor. O fruto desta união é «tornar-se uma só carne», quer no abraço físico, quer na união dos corações e das vidas e, porventura, no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de levar as duas «carnes», unindo-as genética e espiritualmente.
Os teus filhos como rebentos de oliveira
14. Retomemos o canto do Salmista. Lá, dentro da casa onde o homem e a sua esposa estão sentados à mesa, aparecem os filhos que os acompanham «como rebentos de oliveira» (Sl 128/127, 3), isto é, cheios de energia e vitalidade. Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos constituem as «pedras vivas» da família (cf. 1Ped 2, 5). É significativo que, no Antigo Testamento, a palavra que aparece mais vezes depois da designação divina (YHWH, o «Senhor») é «filho» (ben), um termo que remete para o verbo hebraico que significa «construir» (banah). Por isso, noutro Salmo, exalta-se o dom dos filhos com imagens que aludem quer à edificação duma casa, quer à vida social e comercial que se desenrolava às portas da cidade: «Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os construtores. (...) Olhai: os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das entranhas, uma verdadeira dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim são os filhos nascidos na juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua aljava! Não será envergonhado pelos seus inimigos, quando com eles discutir às portas da cidade» (Sl 127/126, 1.3-5). É verdade que estas imagens reflectem a cultura duma sociedade antiga, mas a presença dos filhos é, em todo o caso, um sinal de plenitude da família na continuidade da mesma história de salvação, de geração em geração.
15. Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família. Sabemos que, no Novo Testamento, se fala da «igreja que se reúne em casa» (cf. 1Cor 16, 19; Rm 16, 5; Col 4, 15; Flm 2). O espaço vital duma família podia transformar-se em igreja doméstica, em local da Eucaristia, da presença de Cristo sentado à mesma mesa. Inesquecível é a cena descrita no Apocalipse: «Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo» (3, 20). Esboça-se assim uma casa que abriga no seu interior a presença de Deus, a oração comum e, por conseguinte, a bênção do Senhor. Isto mesmo se afirma no Salmo 128, que nos serviu de base: «Assim vai ser abençoado o homem que obedece ao Senhor. O Senhor te abençoe do monte Sião!» (vv. 4-5).
16. A Bíblia considera a família também como o local da catequese dos filhos. Vê-se isto claramente na descrição da celebração pascal (cf. Ex 12, 26-27; Dt 6, 20-25) – mais tarde explicitado na haggadah judaica –, concretamente no diálogo que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como um Salmo exalta o anúncio familiar da fé: «O que ouvimos e aprendemos e os nossos antepassados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo contaremos às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei em Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que as gerações futuras a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem aos seus próprios filhos» (Sl 78/77, 3-6). Por isso, a família é o lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma tarefa «artesanal», pessoa a pessoa: «Se amanhã o teu filho te perguntar (...), dir-lhe-ás...» (Ex 13, 14). Assim, entoarão o seu canto ao Senhor as diferentes gerações, «os jovens e as donzelas, os velhos e as crianças» (Sl 148, 12).
17. Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade, a sua missão educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia (cf. Pr 3, 11-12;6, 20-22; 13, 1; 29, 17). Os filhos são chamados a receber e praticar o mandamento «honra o teu pai e a tua mãe» (Ex 20, 12), querendo o verbo «honrar» indicar o cumprimento das obrigações familiares e sociais em toda a sua plenitude, sem os transcurar com desculpas religiosas (cf. Mc 7, 11-13). Com efeito, «o que honra o pai alcança o perdão dos pecados, e quem honra a sua mãe é semelhante ao que acumula tesouros» (Sir 3, 3-4).
18. O Evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se é verdade que Jesus Se apresenta como modelo de obediência a seus pais terrenos, submetendo-Se a eles (cf. Lc 2, 51), também é certo que Ele faz ver que a escolha de vida do filho e a sua própria vocação cristã podem exigir uma separação para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de Deus (cf. Mt 10, 34-37; Lc 9, 59-62). Mais ainda! Ele próprio, aos doze anos, responde a Maria e a José que tem uma missão mais alta a realizar para além da sua família histórica (cf. Lc 2, 48-50). Por isso, exalta a necessidade de outros laços mais profundos, mesmo dentro das relações familiares: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 8, 21). Por outro lado, Jesus presta tal atenção às crianças – consideradas, na sociedade do Médio Oriente antigo, como sujeitos sem particulares direitos e inclusivamente como parte da propriedade familiar –, que chega ao ponto de as propor aos adultos como mestres, devido à sua confiança simples e espontânea nos outros. «Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu» (Mt 18, 3-4).
Um rasto de sofrimento e sangue
19. O idílio, que o Salmo128 apresenta, não nega uma amarga realidade que marca toda a Sagrada Escritura: é a presença do sofrimento, do mal, da violência, que dilaceram a vida da família e a sua comunhão íntima de vida e de amor. Não é de estranhar que o discurso de Cristo sobre o matrimónio (cf.Mt 19, 3-9) apareça inserido numa disputa a respeito do divórcio. A Palavra de Deus é testemunha constante desta dimensão obscura que assoma já nos primórdios, quando, com o pecado, a relação de amor e pureza entre o homem e a mulher se transforma num domínio: «Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará» (Gn 3, 16).
20. É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas páginas da Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra Abel e dos vários litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família de David, até às numerosas dificuldades familiares que regista a história de Tobias ou a confissão amarga de Job abandonado: Deus «afastou de mim os meus irmãos, e os meus amigos retiraram-se como estranhos. (...)A minha mulher sente repugnância do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos» (Jb 19, 13.17).
21. O próprio Jesus nasce numa família modesta, que à pressa tem de fugir para uma terra estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde a sua sogra está doente (cf. Mc 1, 29-31), deixa-Se envolver no drama da morte na casa de Jairo ou no lar de Lázaro (cf. Mc 5, 22-24.35-43; Jo 11, 1-44), ouve o pranto desesperado da viúva de Naim pelo seu filho morto (cf. Lc 7, 11-15); atende o grito do pai do epiléptico numa pequena povoação rural (cf. Mc 9, 17-27). Encontra-Se com publicanos, como Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias casas (cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10), e também com pecadoras, como a mulher que invade a casa do fariseu (cf. Lc 7, 36-50). Conhece as ansiedades e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas parábolas: desde filhos que deixam a própria casa para tentar alguma aventura (cf. Lc 15, 11-32) até filhos difíceis com comportamentos inexplicáveis (cf. Mt 21, 28-31) ou vítimas da violência (cf. Mc 12, 1-9). Interessa-Se ainda pela situação embaraçosa que se vive numas bodas pela falta de vinho (cf. Jo 2, 1-10) ou pela recusa dos convidados a participar nelas (cf. Mt 22, 1-10), e conhece também o pesadelo que representa a perda duma moeda numa família pobre (cf. Lc 15, 8-10).
22. Nesta breve resenha, podemos comprovar que a Palavra de Deus não se apresenta como uma sequência de teses abstractas, mas como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus «enxugar todas as lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4).
O fruto do teu próprio trabalho
23. No início do Salmo 128, o pai é apresentado como um trabalhador que pode, com a obradas suas mãos, manter o bem-estar físico e a serenidade da sua família: «Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás contente» (v. 2). O facto de o trabalho ser uma parte fundamental da dignidade da vida humana deduz-se das primeiras páginas da Bíblia, quando se afirma que Deus «colocou [o homem] no Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar» (Gn2, 15). Temos aqui a imagem do trabalhador que transforma a matéria e aproveita as energias da criação, fazendo nascer o «pão de tanta fadiga» (Sl 127/126, 2), para além de se cultivar a si mesmo.
24. O trabalho torna possível simultaneamente o desenvolvimento da sociedade, o sustento da família e também a sua estabilidade e fecundidade: «Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida e chegues a veros filhos dos teus filhos» (Sl 128/127, 5-6). No livro dos Provérbios, realça-se também a tarefa da mãe de família, cujo trabalho aparece descrito nas suas múltiplas mansões diárias, merecendo o elogio do marido e dos filhos (cf.31, 10-31). O próprio apóstolo Paulo sentia-se orgulhoso por ter vivido sem ser um fardo para os outros, porque trabalhou comas suas mãos, garantindo-se deste modo o sustento (cf. Act 18, 3; 1Cor 4, 12; 9, 12).Estava tão convencido da necessidade do trabalho, que estabeleceu esta férrea norma para as suas comunidades: «Se alguém não quer trabalhar, também não coma» (2Ts 3,10; cf. 1Ts 4, 11).
25. Dito isto, compreende-se que o desemprego e a precariedade laboral gerem sofrimento, como atesta o livro de Rute e como lembra Jesus na parábola dos trabalhadores sentados, em ócio forçado, na praça da localidade (cf. Mt 20, 1-16), ou como pôde verificar pessoalmente vendo-Se muitas vezes rodeado de necessitados e famintos. Isto mesmo vive tragicamente a sociedade actual em muitos países, e esta falta de emprego afecta, de várias maneiras, a serenidade das famílias.
26. Também não podemos esquecera degeneração que o pecado introduz na sociedade, quando o homem se comporta como um tirano com a natureza, devastando-a, utilizando-a de forma egoísta e até brutal. Como consequência, temos, simultaneamente, a desertificação do solo (cf.Gn 3, 17-19) e os desequilíbrios económicos e sociais, contra os quais se levanta, abertamente, a voz dos profetas, desde Elias (cf.1Re 21) até chegar às palavras que o próprio Jesus pronuncia contra a injustiça (cf. Lc 12, 13-21; 16,1-31).
A ternura do abraço
27. Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs sobretudo a lei do amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo 13, 34), e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe costumam testemunhar na sua própria vida: «Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus amigos» (Jo 15, 13). Frutos do amor são também a misericórdia e o perdão. Nesta linha, é emblemática a cena que nos apresenta uma adúltera na explanada do templo de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores e, depois, sozinha com Jesus, que não a condena mas convida-a a uma vida mais digna (cf. Jo 8, 1-11).
28. No horizonte do amor, essencial na experiência cristã do matrimónio e da família, destaca-se ainda outra virtude, um pouco ignorada nestes tempos de relações frenéticas e superficiais: a ternura. Detenhamo-nos no terno e denso Salmo 131, onde – como se observa, aliás, noutros textos (cf. Ex 4, 22; Is 49, 15; Sl 27/26, 10) – a união entre o fiel e o seu Senhor é expressa com traços de amor paterno e materno. Lá aparece a intimidade delicada e carinhosa entre a mãe e o seu bebé, um recém-nascido que dorme nos braços de sua mãe depois de ter sido amamentado. Como indica a palavra hebraica gamùl, trata-se dum menino que acaba de mamar e se agarra conscientemente à mãe que o leva ao colo. É, pois, uma intimidade consciente, e não meramente biológica. Por isso canta o Salmista: «Estou sossegado e tranquilo, como criança saciada ao colo da mãe» (Sl 131/130, 2). Paralelamente, podemos ver outra cena na qual o profeta Oseias coloca na boca de Deus, visto como pai, estas palavras comoventes: «Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o (...), Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus braços (...). Segurava-o com laços de ternura, com laços de amor, fui para ele como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele para lhe dar de comer» (Os 11, 1.3-4).
29. Com este olhar feito de fé e amor, de graça e compromisso, de família humana e Trindade divina, contemplamos a família que a Palavra de Deus confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos, para que formem uma comunhão de pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Por sua vez, a actividade geradora e educativa é um reflexo da obra criadora do Pai. A família é chamada a compartilhara oração diária, a leitura da Palavra de Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.
30. Cada família tem diante de si o ícone da família de Nazaré, com o seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando teve que sofrer a violência incompreensível de Herodes, experiência que ainda hoje se repete tragicamente em muitas famílias de refugiados descartados e inermes. Como os Magos, as famílias são convidadas a contemplar o Menino com sua Mãe, a prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11). Como Maria, são exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2, 19.51). No tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente. Por isso pode ajudar-nos a interpretá-los de modo a reconhecera mensagem de Deus na história familiar.

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