291. Os Padres sinodais afirmaram que, embora a Igreja reconheça que
toda a ruptura do vínculo matrimonial «é contra a vontade de Deus, está
consciente também da fragilidade de muitos dos seus filhos».[311]
Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja «dirige-se com amor àqueles
que participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça
de Deus também actua nas suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o
bem, cuidar com amor um do outro e estar ao serviço da comunidade onde
vivem e trabalham».[312]
Aliás esta atitude vê-se corroborada no contexto de um Ano Jubilar
dedicado à misericórdia. Embora não cesse jamais de propor a perfeição e
convidar a uma resposta mais plena a Deus, «a Igreja deve acompanhar,
com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo
amor ferido e extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança, como
a luz do farol dum porto ou duma tocha acesa no meio do povo para
iluminar aqueles que perderam a rota ou estão no meio da tempestade».[313] Não esqueçamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital de campanha.
292. O matrimónio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua
Igreja, realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que
se doam reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se
pertencem até à morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo
sacramento que lhes confere a graça para se constituírem como igreja
doméstica e serem fermento de vida nova para a sociedade. Algumas formas
de união contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o
realizam pelo menos de forma parcial e analógica. Os Padres sinodais
afirmaram que a Igreja não deixa de valorizar os elementos construtivos
nas situações que ainda não correspondem ou já não correspondem à sua
doutrina sobre o matrimónio.[314]
A gradualidade na pastoral
293. Os Padres consideraram também a situação particular de um
matrimónio apenas civil ou mesmo, ressalvadas as distâncias, da mera
convivência: «quando a união atinge uma notável estabilidade através dum
vínculo público e se caracteriza por um afecto profundo,
responsabilidade para com a prole, capacidade de superar as provas, pode
ser vista como uma ocasião a acompanhar na sua evolução para o
sacramento do matrimónio».[315]
Além disso, é preocupante que hoje muitos jovens não tenham confiança
no matrimónio e convivam adiando indefinidamente o compromisso conjugal,
enquanto outros põem termo ao compromisso assumido e imediatamente
instauram um novo. Aqueles «que fazem parte da Igreja, precisam duma
atenção pastoral misericordiosa e encorajadora».[316]
Com efeito, aos pastores compete não só a promoção do matrimónio
cristão, mas também «o discernimento pastoral das situações de muitas
pessoas que deixaram de viver esta realidade», para «entrar em diálogo
pastoral com elas a fim de evidenciar os elementos da sua vida que
possam levar a uma maior abertura ao Evangelho do matrimónio na sua
plenitude».[317]
No discernimento pastoral, convém «identificar elementos que possam
favorecer a evangelização e o crescimento humano e espiritual».[318]
294. «Muitas vezes a escolha do matrimónio civil ou, em diversos
casos, da simples convivência não é motivada por preconceitos ou
relutância face à união sacramental, mas por situações culturais ou
contingentes».[319] Nestas situações, poderão ser valorizados aqueles sinais de amor que refletem de algum modo o amor de Deus.[320]
Sabemos que «está em contínuo crescimento o número daqueles que, depois
de terem vivido juntos longo tempo, pedem a celebração do matrimónio na
Igreja. Muitas vezes, escolhe-se a simples convivência por causa da
mentalidade geral contrária às instituições e aos compromissos
definitivos, mas também porque se espera adquirir maior segurança
existencial (emprego e salário fixo). Noutros países, por último, as
uniões de facto são muito numerosas, não só pela rejeição dos valores da
família e do matrimónio, mas sobretudo pelo facto de a cerimónia do
casamento ser sentida como um luxo, pelas condições sociais, de modo que
a miséria material impele a viver uniões de facto».[321]
Mas «é preciso enfrentar todas estas situações de forma construtiva,
procurando transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude
do matrimónio e da família à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e
acompanhá-las com paciência e delicadeza».[322] Foi o que Jesus fez com a Samaritana (cf. Jo
4, 1-26): dirigiu uma palavra ao seu desejo de amor verdadeiro, para a
libertar de tudo o que obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria
plena do Evangelho.
295. Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada «lei da
gradualidade», ciente de que o ser humano «conhece, ama e cumpre o bem
moral segundo diversas etapas de crescimento».[323]
Não é uma «gradualidade da lei», mas uma gradualidade no exercício
prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de
compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências
objectivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o
caminho; um dom para todos sem excepção, que se pode viver com a força
da graça, embora cada ser humano «avance gradualmente com a progressiva
integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo e
absoluto em toda a vida pessoal e social».[324]
O discernimento das situações chamadas «irregulares»[325]
296. O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou
imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que pretendi
propor, com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no
caminho: «Duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar
e reintegrar. (...) O caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém
em diante, é sempre o de Jesus: o caminho da misericórdia e da
integração. (...) O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente
ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a
pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre
imerecida, incondicional e gratuita».[326]
Por isso, «temos de evitar juízos que não tenham em conta a
complexidade das diversas situações e é necessário estar atentos ao modo
em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição».[327]
297. Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar
a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se
sinta objecto duma misericórdia «imerecida, incondicional e gratuita».
Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do
Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união,
mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem. Obviamente, se
alguém ostenta um pecado objectivo como se fizesse parte do ideal
cristão ou quer impor algo diferente do que a Igreja ensina, não pode
pretender dar catequese ou pregar e, neste sentido, há algo que o separa
da comunidade (cf. Mt 18, 17). Precisa de voltar a ouvir o
anúncio do Evangelho e o convite à conversão. Mas, mesmo para esta
pessoa, pode haver alguma maneira de participar na vida da comunidade,
quer em tarefas sociais, quer em reuniões de oração, quer na forma que
lhe possa sugerir a sua própria iniciativa discernida juntamente com o
pastor. Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas
«irregulares», os Padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu
sustento: «Na abordagem pastoral das pessoas que contraíram matrimónio
civil, que são divorciadas novamente casadas, ou que simplesmente
convivem, compete à Igreja revelar-lhes a pedagogia divina da graça nas
suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude do desígnio que Deus tem
para elas»,[328] sempre possível com a força do Espírito Santo.
298. Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem
encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser
catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar
espaço para um adequado discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa é
uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade
comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da
irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás
sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas. A Igreja
reconhece a existência de situações em que «o homem e a mulher, por
motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se podem
separar».[329]
Há também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o
primeiro matrimónio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles
que «contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às
vezes, estão subjectivamente certos em consciência de que o precedente
matrimónio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido».[330]
Coisa diferente, porém, é uma nova união que vem dum divórcio recente,
com todas as consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos
e famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente
aos seus compromissos familiares. Deve ficar claro que este não é o
ideal que o Evangelho propõe para o matrimónio e a família. Os Padres
sinodais afirmaram que o discernimento dos pastores sempre se deve fazer
«distinguindo adequadamente»,[331] com um olhar que discirna bem as situações.[332] Sabemos que não existem «receitas simples».[333]
299. Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram
afirmar que «os baptizados que se divorciaram e voltaram a casar
civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as
diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A
lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral, para
saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas
podem também ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda. São
baptizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e
carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em
diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir
quais das diferentes formas de exclusão actualmente praticadas em âmbito
litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas.
Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como
membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe,
cuida afectuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do
Evangelho. Esta integração é necessária também para o cuidado e a
educação cristã dos seus filhos, que devem ser considerados o elemento
mais importante».[334]
300. Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações
concretas, como as que mencionamos antes, é compreensível que se não
devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de
tipo canónico, aplicável a todos os casos. É possível apenas um novo
encorajamento a um responsável discernimento pessoal e pastoral dos
casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que «o grau de
responsabilidade não é igual em todos os casos»,[335] as consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos.[336]
Os sacerdotes têm o dever de «acompanhar as pessoas interessadas pelo
caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações
do bispo. Neste processo, será útil fazer um exame de consciência,
através de momentos de reflexão e arrependimento. Os divorciados
novamente casados deveriam questionar-se como se comportaram com os seus
filhos, quando a união conjugal entrou em crise; se houve tentativas de
reconciliação; como é a situação do cônjuge abandonado; que
consequências têm a nova relação sobre o resto da família e a comunidade
dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se devem preparar
para o matrimónio. Uma reflexão sincera pode reforçar a confiança na
misericórdia de Deus que não é negada a ninguém».[337]
Trata-se dum itinerário de acompanhamento e discernimento que «orienta
estes fiéis na tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O
diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação dum
juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade duma
participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que a podem
favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há
gradualidade (cf. Familiaris consortio,
34), este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências
evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto
aconteça, devem garantir-se as necessárias condições de humildade,
privacidade, amor à Igreja e à sua doutrina, na busca sincera da vontade
de Deus e no desejo de chegar a uma resposta mais perfeita à mesma».[338]
Estas atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens
equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder
rapidamente «excepções», ou de que há pessoas que podem obter
privilégios sacramentais em troca de favores. Quando uma pessoa
responsável e discreta, que não pretende colocar os seus desejos acima
do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe reconhecer a
seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que um
certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla.
As circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral
301. Para se entender adequadamente por que é possível e necessário
um discernimento especial nalgumas situações chamadas «irregulares», há
uma questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se
pretende diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma
sólida reflexão sobre os condicionamentos e as circunstâncias
atenuantes. Por isso, já não é possível dizer que todos os que estão
numa situação chamada «irregular» vivem em estado de pecado mortal,
privados da graça santificante. Os limites não dependem simplesmente dum
eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo conhecendo bem a
norma, pode ter grande dificuldade em compreender «os valores inerentes à
norma»[339]
ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir
de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como
bem se expressaram os Padres sinodais, «pode haver factores que limitam a
capacidade de decisão».[340] E São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma das virtudes,[341]
pelo que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta
com clareza a existência de alguma delas, porque a prática exterior
dessa virtude está dificultada: «Diz-se que alguns Santos não têm certas
virtudes, enquanto experimentam dificuldade em pô-las em acto, embora
tenham os hábitos de todas as virtudes».[342]
302. A propósito destes condicionamentos, o Catecismo da Igreja Católica
exprime-se de maneira categórica: «A imputabilidade e responsabilidade
dum acto podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a
inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas
e outros factores psíquicos ou sociais».[343]
E, noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a
responsabilidade moral, nomeadamente «a imaturidade afectiva, a força
de hábitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos
ou sociais».[344]
Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não
implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa
envolvida.[345]
No contexto destas convicções, considero muito apropriado aquilo que
muitos Padres sinodais quiseram sustentar: «Em determinadas
circunstâncias, as pessoas encontram grandes dificuldades para agir de
maneira diferente. (...) O discernimento pastoral, embora tendo em conta
a consciência rectamente formada das pessoas, deve ocupar-se destas
situações. As próprias consequências dos actos praticados não são
necessariamente as mesmas em todos os casos».[346]
303. A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos
concretos, podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser
melhor incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não
realizam objetivamente a nossa conceção do matrimónio. É claro que
devemos incentivar o amadurecimento duma consciência esclarecida,
formada e acompanhada pelo discernimento responsável e sério do pastor, e
propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta consciência pode
reconhecer não só que uma situação não corresponde objectivamente à
proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com sinceridade e
honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode
oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a
doação que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta
dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objectivo. Em todo
o caso, lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve
permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas
decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa.
As normas e o discernimento
304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa
corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para
discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta
dum ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo
que ensina São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no
discernimento pastoral: «Embora nos princípios gerais tenhamos o
carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos
particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da acção, a
verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as aplicações
particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a
rectidão é idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida
por todos. (...) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta
a indeterminação».[347]
É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve
ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar
absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso
afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte dum
discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à
categoria de norma. Isto não só geraria uma casuística insuportável, mas
também colocaria em risco os valores que se devem preservar com
particular cuidado.[348]
305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas
aplicando leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares», como
se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos
corações fechados, que muitas vezes se escondem até por detrás dos
ensinamentos da Igreja «para se sentar na cátedra de Moisés e julgar, às
vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as
famílias feridas».[349] Na mesma linha se pronunciou a Comissão
Teológica Internacional: «A lei natural não pode ser apresentada como
um conjunto já constituído de regras que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objectiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão».[350]
Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível
que uma pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas
subjectivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa
viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de
graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja.[351] O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de
resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que
tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do
crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a
Deus. Lembremo-nos de que «um pequeno passo, no meio de grandes
limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida
externamente correcta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar
sérias dificuldades».[352] A pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar esta realidade.
306. Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade
em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a
via caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos cristãos (cf. Jo 15, 12; Gal
5, 14). Não esqueçamos a promessa feita na Sagrada Escritura: «Acima de
tudo, mantende entre vós uma intensa caridade, porque o amor cobre a
multidão de pecados» (1 Ped 4, 8); «redime o teu pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes» (Dn 4, 24); «a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o pecado» (Sir
3, 30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: «Tal como, em perigo de
incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo
deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a
chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra
cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que
nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para extinguir o
incêndio».[353]
A lógica da misericórdia pastoral
307. Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de
modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do
matrimónio, o projecto de Deus em toda a sua grandeza: «É preciso
encorajar os jovens baptizados para não hesitarem perante a riqueza que o
sacramento do matrimónio oferece aos seus projectos de amor, com a
força do apoio que recebem da graça de Cristo e da possibilidade de
participar plenamente na vida da Igreja».[354]
A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na
hora de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e
também uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão
pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal
mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano.
Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço
pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as rupturas.
308. Todavia, da nossa consciência do peso das circunstâncias
atenuantes – psicológicas, históricas e mesmo biológicas – conclui-se
que, «sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar,
com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das
pessoas, que se vão construindo dia após dia», dando lugar à
«misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível».[355]
Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê
lugar a confusão alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer
uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade:
uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina
objectiva, «não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de
sujar-se com a lama da estrada».[356]
Os pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a
doutrina da Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da
compaixão pelas pessoas frágeis e evitar perseguições ou juízos
demasiado duros e impacientes. O próprio Evangelho exige que não
julguemos nem condenemos (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). Jesus
«espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou
comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a
fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida
concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a
vida complica-se sempre maravilhosamente».[357]
309. É providencial que estas reflexões sejam desenvolvidas no
contexto de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia, porque, também
perante as mais diversas situações que afectam a família, «a Igreja tem a
missão de anunciara misericórdia de Deus, coração pulsante do
Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada
pessoa. A Esposa de Cristo assume o comportamento do Filho de Deus, que
vai ao encontro de todos sem excluir ninguém».[358]
Ela bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta como Pastor de cem
ovelhas, não de noventa e nove; e quer tê-las todas. A partir desta
consciência, tornar-se-á possível que «a todos, crentes e afastados,
possa chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já
presente no meio de nós».[359]
310. Não podemos esquecer que «a misericórdia não é apenas o agir do
Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus
verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia,
porque, primeiro, foi usada misericórdia para connosco».[360]
Não é uma proposta romântica nem uma resposta débil ao amor de Deus,
que sempre quer promover as pessoas, porque «a arquitrave que suporta a
vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar
envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e
testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de
misericórdia».[361]
É verdade que, às vezes, «agimos como controladores da graça e não como
facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde
há lugar para todos com a sua vida fadigosa».[362]
311. O ensino da teologia moral não deveria deixar de assumir estas
considerações, porque, embora seja verdade que é preciso ter cuidado com
a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve pôr
um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores mais altos e
centrais do Evangelho,[363]
particularmente o primado da caridade como resposta à iniciativa
gratuita do amor de Deus. Às vezes custa-nos muito dar lugar, na
pastoral, ao amor incondicional de Deus.[364]
Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido
concreto e real significado, e esta é a pior maneira de aguar o
Evangelho. É verdade, por exemplo, que a misericórdia não exclui a
justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos de dizer que a
misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da
verdade de Deus. Por isso, convém sempre considerar «inadequada qualquer
concepção teológica que, em última instância, ponha em dúvida a própria
omnipotência de Deus e, especialmente, a sua misericórdia».[365]
312. Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem de
desenvolver uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos temas
mais delicados, situando-nos, antes, no contexto dum discernimento
pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para
compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta é a
lógica que deve prevalecer na Igreja, para «fazer a experiência de
abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias
existenciais».[366]
Convido os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximar-se com
confiança para falar com os seus pastores ou com leigos que vivem
entregues ao Senhor. Nem sempre encontrarão neles uma confirmação das
próprias ideias ou desejos, mas seguramente receberão uma luz que lhes
permita compreender melhor o que está a acontecer e poderão descobrir um
caminho de amadurecimento pessoal. E convido os pastores a escutar, com
carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar no coração do
drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para ajudá-las a
viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja.
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